MATERIALIDADE, MOTRICIDADE, INTENCIONALIDADE – NOTAS
Procurei organizar o meu contributo para este Colóquio em torno de três conjuntos de notas que poderiam ser sumariamente formuladas nestes termos:
1) Questionar a especificidade portuguesa no que concerne às relações com o mar bem como ao entendimento e expressão disciplinar do registo da maritimidade;
2) Suscitar inquietações relativamente aos processos de patrimonialização e à actividade dos museus equacionando alguns aspectos de natureza teórica e epistemológica mais geral, designadamente, a indissociabilidade da consciência e do movimento ou a constituição de uma relação dialéctica e historicamente situada entre memória e esquecimento, apelando para as circularidades criadoras e para os paradoxos;
3) Perspectivar os focos de interesse, actividades e projectos de todos os que se interessam pelo mar, pela maritimidade e pelas culturas marítimas a partir do presente, evocando as circunstâncias sociológicas do “novo espírito do capitalismo”, “capitalismo total” ou “capitalismo cognitivo” e as concomitantes exigências de mercadorização do conhecimento.
Os vários aspectos desenvolvidos (e, sobretudo, os que ficaram por desenvolver) no âmbito da exploração dos três tópicos enunciados, tinham como fio condutor a tripla articulação Motricidade / Materialidade / Intencionalidade – articulação cuja pertinência, neste contexto, decorre directamente da minha experiência de pesquisa em torno da arte xávega, em que procurei ilustrar a ideia de que as actividades humanas são indissociáveis do espaço físico e simbólico em que se produzem, ou seja: a originalidade das regiões costeiras prolonga-se na própria historicidade do complexo de interacções entre os muitos grupos sociais que, directa ou indirectamente, as utilizam, sendo que as várias modalidades de utilização possíveis resultam em contrastes e diferenças significativas ao nível do impacto visual, auditivo, táctil, olfactivo e sinestésico da paisagem e de tudo o que nela se pode constituir objecto de reflexão, classificação e transformação por parte dos agentes envolvidos. É preciso ter presente, portanto, que a pesca e a navegação – como, aliás, qualquer actividade humana – apoiam-se, necessariamente, em conjuntos de utensílios materiais e cognitivos que integram sempre um universo mais vasto de relações sociais, políticas e económicas cuja investigação não devemos descurar.
1. No que concerne ao primeiro dos três tópicos, direi apenas, muito rapidamente:
a) Que não creio ser possível uma história da cultura em Portugal que não equacione as relações do país e das suas populações com o mar, devendo daí retirar-se, de forma criativa e inovadora, no plano disciplinar em que nos situamos, todas as consequências;
b) Que a tão cantada (mas pouco decantada) ausência dos pescadores do mainstream da pesquisa das Ciências Sociais e Humanas não é apenas uma recorrência funcionando como uma espécie de exorcismo propedêutico para os nossos trabalhos, nem tampouco uma mera expressão do pathos nacional. Idêntica ausência é registada também em nações europeias que foram outrora, ou são ainda hoje, grandes potências marítimas, como as vizinhas Espanha e França, o mesmo acontecendo no Brasil. Até mesmo Sir Raymond Firth, antropólogo cujo trabalho clássico sobre os pescadores malaios é tido como fundador da sub-disciplina designada Antropologia das Pescas (designação com a qual não me identifico minimamente, preferindo, antes, a mais expressiva e abrangente Antropologia Marítima) regista, em 1946, o mesmo tipo de défice, acusando a inexistência de trabalhos sobre grupos piscatórios e a profusão de trabalhos sobre populações de agricultores. Isto deve constituir motivo de reflexão.
c) Que a presença consentida desta ausência pode ser adequadamente evocada através da parábola de Jorge Luís Borges “A Dádiva sem Fim”. A ausência do quadro que um pintor entretanto falecido lhe prometera, no espaço vazio da parede, transfigurou-se numa presença «ilimitada, incessante, capaz de qualquer forma e qualquer cor». A propósito, aliás, do tópico “a arte e o mar”, senti a falta, no Colóquio, de algum comentário/exploração em torno dos pintores da nossa modernidade – Adriano de Sousa Lopes, João Cristino da Silva ou António Carneiro, por exemplo
2. Neste ponto, entramos no domínio da Complexidade. Sabemos que o nosso cérebro/sistema nervoso central produz processos de mudança que afectam a ulterior produção de processos de mudança. No entanto, para os antropólogos, a cognição é um processo micro-histórico. As actividades “internas” do chassis neuronal só fazem sentido na medida em que são apoiadas e suportadas por uma rede químico-eléctrica mais vasta composta pela miríade de interfaces sensoriais integradas em músculos, ossos, tendões… que, por sua vez, só se compreendem plenamente, na sua actividade e propósitos, na medida em que se articulam com o conjunto das corporalidades em que tem lugar a nossa existência social, cambiável segundo as circunstâncias ambientais em que se desenvolve a sua acção. A concepção, fabrico e uso de objectos pressupõe uma adequação das motricidades à matéria e ao meio-ambiente equacionada no plano da intencionalidade humana. A navegação, como qualquer outra actividade, implica procedimentos técnicos que incluem as corporalidades dos agentes em presença e a aplicação de estereótipos, ou algoritmos motores, que convertem as máquinas e os instrumentos em extensões sensoriais do nosso corpo, ou seja: no decurso das nossas actividades, incorporamos dinamicamente estas “próteses” (objectos) numa dada ordem performativa. Nalgumas circunstâncias, experienciamos até alguma forma de interconectividade somática, seja por via da prática de um desporto ou actividade concertada (de que a navegação será, certamente, um excelente exemplo), seja por via da partilha circunstancial, escópica ou auditiva, de um qualquer fenómeno – como, por exemplo, quando em determinadas circunstâncias os patrimónios se instalam num dado horizonte expositivo e se dão a ver, a ouvir… Os Museus são lugares de pesquisa que, gradualmente, ultrapassam a ansiedade cartesiana implícita no dualismo, na ideia de “representação”, na concepção da mente como espelho de um mundo objectivável cenograficamente. Só a investigação criativa pode transfigurar os objectos pela valorização dos elos entre comportamentos sensório-motores, pensamento, cultura material…
3) Toda a história é história do presente. Mas o presente compõe-se de dois momentos que se caracterizam, justamente, por não estarem presentes – entre a memória e a intenção: o momento que acaba de ser e já passou; e o que é apenas impulso em direcção a um momento seguinte estabelecido pelo desejo, ou pelo querer.
Escreveu Jean-François Lyotard em 1986 que «o antigo princípio de que a aquisição do saber é indissociável da formação (Bildung) do espírito, e mesmo da pessoa, cai e cairá cada vez mais em desuso. A relação dos fornecedores e dos utilizadores do conhecimento com este tende e tenderá a revestir-se da forma que os produtores e consumidores de mercadorias têm com estas últimas, ou seja, a forma de valor. O saber é e será produzido para ser vendido» (Lyotard 1989: 18). As universidades, enquanto projectos da livre expressão identitária dos estados-nação – ou seja, enquanto instituições – estão assim a sucumbir perante a progressiva desregulação que acompanha a disseminação da paradigmática “sociedade do conhecimento”. A língua e a cultura deixaram de constituir referências centrais da nossa existência colectiva. A vida humana deixa também de se referir a quaisquer valores simbólicos mas apenas à sua capacidade para se adequar aos fluxos de circulação de mercadorias e ao desejo de eliminar todos os entraves à sua plena expansão – daí as facilidades dos modelos em rede. Entretanto, as nossas elites, até há bem pouco tempo empenhadas em processos de afirmação identitária materializados em programas para a celebração dos descobrimentos, das virtudes da lusofonia e dos oceanos, propõem agora gerir as universidades como um negócio e ministrar cursos em língua inglesa, tendo em vista a flexibilidade e a competitividade europeia – e assim se quebra a última fronteira da nossa soberania. Mas os novos direitos de propriedade sobre o conhecimento, os novos negócios e as novas mercadorias, não nos devem fazer esquecer um facto curioso: Portugal conquistou direitos de soberania sobre uma parcela remota da plataforma continental denominada “Rainbow”, junto da Zona Económica Exclusiva dos Açores. Trata-se de um “oásis de vida marinha” com fontes hidrotermais, no Atlântico Nordeste, junto à Zona Económica Exclusiva dos Açores. Rainbow, tem uma extensão de 2215 hectares e situa-se a 2300 metros de profundidade. Aí, pelo menos, ainda não chegou o abandono e a destruição da paisagem, dos lugares e das actividades, mas os discursos relativos ao mar, ao seu aproveitamento e aos seus usos – tal como, aliás, o domínio haliêutico em geral – são, a todos os títulos, uma permanente fonte de reflexão. Que consequências para os processos de patrimonialização que se esboçam para o futuro próximo? Que consequências para a actividade dos Museus e para a investigação?
Francisco Oneto Nunes
(Deptº de Antropologia do ISCTE)
segunda-feira, 19 de novembro de 2007
quarta-feira, 31 de outubro de 2007
O desenho da Clarinha
Talvez o desenho da Clarinha – a participante mais jovem do Colóquio realizado no Museu Marítimo de Ílhavo nos dias 19 e 20 de Outubro de 2007 – seja a melhor acta que algum de nós poderia fazer destas duas intensas jornadas de debate.
Ao que tudo indica, a Clara Oneto Vidigal ouviu atentamente a estimulante sugestão do Prof. Joaquim Pais de Brito que, na sua extraordinária conferência de abertura, nos sugeriu que começássemos por estudar o património marítimo pelo seu repertório mais natural – os peixes.
Na verdade, nunca a preservação dos patrimónios marítimos fará qualquer sentido se os mares não tiverem peixes. Os naturalistas de Oitocentos perceberam-no antes de ninguém.
Parece-nos ser este um bom ponto de partida para dar continuidade aos inúmeros debates com que nos fomos defrontando e a partir dos quais pretendemos alimentar, por tempo indeterminado, o crescimento de novas ideias e a sua partilha interactiva que esta plataforma espera proporcionar.
Na sequência dos objectivos definidos no âmbito do Colóquio, mantemos em aberto a discussão sobre os conceitos de patrimónios marítimos e os discursos museológicos que sobre eles são construídos e ambicionamos construir.
Mantemos igualmente a intenção de prolongar um fórum de discussão com espaço para contributos de domínio mais teórico e problematizante, oferecendo molduras conceptuais através das quais podemos continuar a dialogar sobre a prática museológica e a activação de patrimónios marítimos.
Desencadeamos o debate lançando as questões pelas quais ansiávamos obter respostas quando partimos para a ideia do Colóquio e que estiveram sempre presentes na estruturação do seu programa:
- Que mar se representa nos museus que se intitulam marítimos? Que discursos e narrativas sobre a vida marítima presidem às activações patrimoniais que se erguem nos museus?
- De que forma estes discursos são socialmente construídos? Serão eles vivos ou mortos? Identitários ou para-identitários? Mobilizadores de culturas marítimas participadas e promotoras de Desenvolvimento Sustentável ou meras evocações nostálgicas que se erguem para esbater a percepção de uma ideia de perda inexorável?
- Qual o papel da investigação científica na formulação dos projectos museológicos e, em particular dos programas expositivos?
- E de que forma pode a criação artística que aborda temas marítimos ser integrada na programação dos museus, cambiando as suas abordagens do património marítimo, muito marcadas pelos registo evocativo, historicista e serial, por um outro, mais inclusivo e criativo?
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